
Traço unário em Jacques Lacan
Só há aparecimento concebível de um sujeito a partir da introdução primária de um significante,
e do significante mais simples, aquele
chamado de traço unário. O traço unário é anterior ao sujeito.
Jacques Lacan
Jacques Lacan introduz o conceito de traço unário no Seminário 9, "A Identificação" (1961-1962). Nesse seminário, Lacan explora as formas de identificação e o papel dos significantes na estruturação do sujeito. O traço unário surge para localizar um significante isolado que marca o sujeito de maneira decisiva, servindo como pivô em torno do qual ocorrem a identificação e a entrada do sujeito na ordem simbólica.
Freud explorou a natureza da memória em vários momentos da sua obra, propondo que as experiências vividas pelo sujeito são inscritas no aparelho psíquico como traços mnêmicos. Em "Nota sobre o Bloco Mágico" (1925), Freud se serve da metáfora do bloco mágico para ilustrar esse funcionamento. A placa coberta por uma folha translúcida, onde marcas podem ser feitas e apagadas, indica a maneira pela qual a consciência registra experiências momentâneas, enquanto a camada de cera abaixo, que retém os traços dessas inscrições, alude ao inconsciente que guarda as memórias e experiências passadas.
Ainda Freud, em “Psicologia das massas e análise do Eu (1921), nos diz que quando o objeto é perdido, o investimento a ele dirigido é substituído por uma identificação que é "parcial, extremamente limitada que conserva apenas um traço (einziger Zug) da pessoa objeto". Esses traços, ou inscrições, não são simples recordações, mas representações que podem ser reativadas e mobilizadas em outros contextos, como nos sonhos e na transferência.
Nessa direção, ao discutir como as ideias e os objetos são representados no inconsciente, Freud distingue a "representações de coisa" (Sachvorstellung) da "representações de palavra" (Wortvorstellung). A noção de traço unário de Lacan expande essa ideia, apontando que os significantes (ou traços unários) funcionam como os elementos pelos quais o sujeito é representado e inscrito na ordem simbólica. Donde o famoso aforisma: um significante é o que representa o sujeito para outro significante.
Lacan implica que, se o objeto for reduzido a um traço, isso é devido à intervenção do significante. Ou seja, o traço unário não é apenas aquilo que subsiste do objeto, é também aquilo que o “apagou” (é a encarnação do significante fálico). A identificação com o traço unário é, portanto, correlativo da castração e da instalação do fantasma — constitui a espinha dorsal do sujeito.
A elaboração em torno do traço unário permite Lacan articular como os significantes inscrevem o sujeito na ordem simbólica, mediando a relação do sujeito com o Outro e com o desejo. Desse modo, o traço unário é conceito incontornável para se acercar da alienação do sujeito na linguagem, pois marca o momento em que o sujeito é capturado pela rede de significantes.
Como implicação clínica, Lacan indica no Seminário 15, “O ato psicanalítico” (1967-1968), que em uma intervenção analítica mira-se no point de capiton, ou seja, nos pontos em que os significantes ancoram o significado e estruturam a rede de desejo do sujeito. Ao intervir nesse nível, o analista pode deslocar os pontos de fixação do sujeito e abrir a possibilidade de uma reconfiguração da cadeia significante. E é no ato analítico, na poeticidade do gesto do analista, que atinge-se algo da ponta significante que o traço unário imprime, em uma aposta para que um novo marco possa ser inaugurado.
Felipe Massaro. Psicanalista e doutor em Letras.
REFERÊNCIAS:
CHEMAMA, Roland. Dicionário de Psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
FORBES, Jorge. Da palavra ao gesto do analista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos (1920-1923) Obras completas volume 15. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FREUD, Sigmund. O eu e o id, autobiografia e outros textos (1923-1925) Obras completas volume 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
JODEAU-BELLE, Laetitial OTTAVI, Laurent. Les fondamentaux de la psychanalyse lacanienne, repères épistémologiques, conceptuels et cliniques. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 9 A identificação, 1962-1963. Inédito.
LACAN, Jacques. Le Seminaire, livre XV L'acte psychanalytique, 1967-1968. Paris: Seuil, 2024.