Conceitos Psicanálise Lacan. .

Tiquê e automaton:
Inteligência Artificial na psicanálise de Jacques Lacan

A tiquê é o acaso propriamente humano,
o encontro falhado com o Real que exige a responsabilidade singular do sujeito.

Jorge Forbes

Os conceitos psicanalíticos de tiquê e automaton, resgatados da Física de Aristóteles, são articulados fundamentalmente no Seminário 11, "Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise" (1964). Eles servem como operadores lógicos essenciais para que Lacan possa redefinir a repetição freudiana: o primeiro passo de uma elaboração que se tornará ainda mais radical no final de seu ensino.

No Seminário 11, Lacan situa a psicanálise para além da homeostase do princípio do prazer através de dois modos de repetição:

O automaton refere-se à rede de significantes, ao movimento espontâneo e insistente da cadeia simbólica. É o lugar do retorno dos signos, onde o discurso tenta se fechar em uma coerência que protege o sujeito do despertar. Na leitura contemporânea proposta por Jorge Forbes, o automaton encontra sua apoteose nos Grandes Modelos de Linguagem (LLMs). A Inteligência Artificial opera na lógica da otimização e do "bom acabamento", uma circulação infinita onde o sentido se produz pela probabilidade, sem corte.

A tiquê, por outro lado, é definida no Seminário 11 como o encontro com o Real. Diferente do automaton (o retorno do mesmo), a tique é o encontro essencialmente faltoso, o inassimilável que surge como acaso ou acidente. É o trauma, o "mal-encontro" que desperta o sujeito de seu sono dogmático.

Mais tarde, a partir do Seminário 20, "Mais, ainda""(1972), Lacan formaliza a tiquê sob a lógica da impossibilidade. O Real deixa de ser apenas o tropeço no acaso para se tornar uma categoria lógica: o impossível. Uma impossibilidade lógica e estrutural: aquilo que "não cessa de não se escrever".

Enquanto a tiquê ainda sugere um evento que ocorre "de fora", a lógica do impossível situa o Real como um furo interno e necessário à própria estrutura da linguagem. O Real não é mais o que surpreende o automaton; ele é o limite instransponível que demonstra que o automaton (o Simbólico) é constitutivamente incompleto.

A clínica do Real, a clínica do e para o século XXI, como nos lembra Forbes, é uma clínica que não busca apenas a causa do trauma, a determinação psíquica, o acidente passado; mas a responsabilidade diante do impossível, do troumatisme, do indeterminado enquanto causa. O objetivo de uma análise não é a busca para "consertar" o acaso, mas para saber fazer algo com a impossibilidade de que tudo se escreva, de que tudo tenha sentido.

Em tempos de Inteligência Artificial, que tenta transformar todo acaso em probabilidade calculável, busca-se eliminar a tiquê de uma nova maneira. Mas essa tentativa esbarra na lógica do impossível: a máquina não pode calcular o que está fora da lógica da escrita, o que é estruturalmente incomputável.

Enquanto as promessas das novas tecnologias parecem insistir no sono irresponsável do automaton — a busca por respostas prontas que tentam cobrir o furo —, a psicanálise aposta no impossível como motor. Afinal, é justamente porque "não há relação sexual" (ou seja, porque a harmonia total é impossível) que somos condenados, diferentemente do cérebro eletrônico, a inventar, a sermos livres. O entusiasmo, como fim de análise, tal como propõe Forbes a partir do último ensino de Lacan, não é a alegria de quem teve sorte no acaso, mas a posição ética de quem, diante do impossível, não hesita em inventar uma saída singular, não serializável — e em colocá-la no mundo. Com ou sem ajuda da IA.



Felipe K. Massaro. Psicanalista e doutor em Letras.



REFERÊNCIAS:
FORBES, Jorge. Inconsciente e responsabilidade: psicanalise do seculo XXI. Barueri: Manole, 2013.
FORBES, Jorge. Psicanálise e IA não falam a mesma língua. Inédito, 2025.
JODEAU-BELLE, Laetitial OTTAVI, Laurent. Les fondamentaux de la psychanalyse lacanienne, repères épistémologiques, conceptuels et cliniques. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20 Mais, ainda, 1972-73. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 1953-1954.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.