Conceitos Psicanálise Lacan, Louise Bourgeois. No. 5 of 14 À l’Infini. 2008.

"Eu ideal" e "Ideal do eu" em Jacques Lacan

O eu está estruturado exatamente como um sintoma.
No interior do sujeito, não é senão um sintoma privilegiado.
É o sintoma humano por excelência, é a doença mental do homem.

Jacques Lacan

Os conceitos psicanalíticos de "ideal do eu" e "eu ideal" estão localizados no início do ensino lacaniano, articulados principalmente na aula de 13 de janeiro de 1954, no contexto do Seminário 1, "Os escritos técnicos de Freud"(1953-1954), e têm implicações importantes nos desenvolvimentos posteriores da doutrina lacaniana.

Nesse seminário, Lacan explora a dinâmica do narcisismo e a formação do eu (moi), discutindo como a imagem do corpo se constitui através do estágio do espelho em uma instância do "eu ideal". Também aborda o "ideal do eu" em relação à instauração do supereu e ao desenvolvimento do complexo de Édipo, ou seja, à entrada do sujeito no campo do Outro.

Essa diferenciação empreendida por Lacan se dá no contexto do seu “retorno a Freud”, que marca a primeira clínica lacaniana. Nesse caso, os conceitos freudianos retomados estão localizados dentro da teoria do narcisismo e da estruturação do supereu.

Na psicanálise de Lacan, assim como na de Freud, o narcisismo é compreendido como um elemento constituinte e estruturante, fundamentalmente ancorado na forma como o sujeito se posiciona em relação ao outro, seja na forma de uma imagem idealizada de si mesmo ("eu ideal") ou na adoção de um ideal que vem do Outro (o "ideal do eu").

O “ideal do eu” surge primeiramente em Freud como um substituto do “eu ideal”. Influenciado pelas críticas parentais e do meio exterior, as primeiras satisfações narcísicas buscadas pelo "eu ideal" são progressivamente abandonadas, sendo sob a forma desse novo "ideal do eu" que o sujeito tenta reconquistá-las. Lacan reinterpreta esses conceitos dentro de sua abordagem estrutural, enfatizando o papel do campo simbólico na constituição do sujeito.

Lacan delineia o conceito de "eu ideal" na sua discussão sobre o estágio do espelho, momento de identificação do infans (aquele que não fala) com a sua imagem unificada e idealizada de si mesmo. Essa identificação, crucial para a formação do eu, é também marcada pela alienação, uma vez que a imagem com a qual o eu se identifica é uma ilusão: imagem de si invertida no espelho, uma “totalidade ortopédica” do corpo fragmentado, pulsional. Essa imagem é o suporte da identificação primária da criança com outro, constituindo o ponto inaugural da alienação do sujeito na captura imaginária.

O "ideal do eu", por outro lado, se refere à instância cuja função, no plano simbólico, é de regular a estrutura imaginária do eu, as identificações e os conflitos que regem suas relações com o outro. Ou seja, está relacionado ao registro simbólico e à função do supereu. Comporta os padrões, valores morais e ideais aos quais o sujeito aspira. O “ideal do eu” é o ponto de referência contra o qual o sujeito mede seu próprio valor e suas realizações. Em Lacan, isso está localizado no momento da entrada do sujeito na ordem simbólica, ou seja, quando o sujeito encontra a lei do Outro. O “ideal do eu”, desse modo, orienta o desejo do sujeito de uma forma que vai além do narcisismo do “eu ideal”, engajando-se com as estruturas sociais e simbólicas às quais o sujeito está submetido.

Essa diferenciação fundamental tem ecos em desdobramentos posteriores no ensino de Lacan. Mais tarde, ao trabalhar o Nó Borromeu de forma mais extensa em seu Seminário 23, "O Sinthoma" (1975-1976), Lacan explora as relações entre os registros Real, Simbólico e Imaginário através de uma abordagem topológica. Nesse momento, o "eu ideal" e o "ideal do eu” são colocados como formas de articulações possíveis entre as imagens narcísicas do eu (Imaginário), os ideais internalizados e as normas simbólicas (Simbólico), bem como o encontro com o Real, que resiste à simbolização, ou seja, corpo que está fora do alcance do significante, o avesso da imagem ortopédica totalizante e alienante do espelho: corpo pulsional, despedaçado, local de gozo — impossível de se fazer todo.



Felipe Massaro. Psicanalista e doutor em Letras.



REFERÊNCIAS:
CHEMAMA, Roland. Dicionário de Psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) Obras completas volume 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
JODEAU-BELLE, Laetitial OTTAVI, Laurent. Les fondamentaux de la psychanalyse lacanienne, repères épistémologiques, conceptuels et cliniques. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23 O sinthoma, 1975-76. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 1 Os escritos técnicos de Freud, 1953-54. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.